
“Queremos uma Universidade que sirva o povo com ciência”
afirma o Reitor da UEM, Prof. Doutor Manuel Guilherme Júnior
Num momento em que o ensino superior moçambicano enfrenta grandes desafios, o Reitor da Universidade Eduardo Mondlane, Prof. Doutor Manuel Guilherme Júnior, defende uma viragem estratégica: transformar a UEM numa Universidade de Investigação até 2028. Em entrevista exclusiva à Televisão de Moçambique, o académico traça as prioridades da instituição, sublinha a necessidade de uma ciência aplicada aos problemas das comunidades e destaca o papel central da academia no desenvolvimento nacional, num contexto de desigualdades sociais, baixa taxa de empregabilidade e escasso financiamento à investigação.
Desde que assumiu o cargo de Reitor, quais são os problemas que identificou para os quais tem estado a concentrar as atenções?
A Universidade Eduardo Mondlane é uma instituição bastante consolidada. E, por via disso, ela tem instrumentos que guiam a sua governação, tais como a existência de órgãos colegiais, como o Conselho de Reitoria, o Conselho de Directores, o Conselho Académico e o Conselho Universitário. Esses órgãos vão estipulando prioridades institucionais. É assim que a UEM está em processo de implementação do seu Plano Estratégico 2018-2028, onde está claramente estipulada a prioridade de transformação da UEM em Universidade de Investigação (UdI).
Mas essa transformação em UdI é quase uma imposição do nosso sistema, porque, ao longo dos 50 anos de independência do país, foram criadas muitas instituições de ensino superior, mas a UEM foi a que impulsionou a criação das outras instituições. O Estado investiu, em grande medida, tanto em termos de infraestruturas como de recursos humanos, na UEM, que, hoje, possui uma grande capacidade científica, daí que se justificava a sua transformação, ao que chamamos de diferenciação funcional.
De facto, está escrito que, até 2028, deve ser uma universidade de investigação. Mas o que é de facto uma universidade de investigação?
A Universidade tem quatro responsabilidades tradicionais: o ensino, a investigação, a extensão universitária e a inovação científica. O ensino foi uma prioridade e formou muitos quadros para beneficiar o funcionamento do nosso Estado, mas a investigação sempre esteve lá, não como uma dimensão de alicerce de todos os processos.
Ter uma universidade de investigação significa que o alicerce de todos os processos se centra na investigação. Portanto, uma investigação multidisciplinar, aplicada, e que contribua para a solução dos problemas concretos das comunidades. E isto só é possível quando se está perante uma instituição com maturidade.
Portanto, a UEM continua fazendo o ensino, faz e sempre fez a investigação, mas, agora, fundamenta todo o seu trabalho na base da investigação, não apenas para formar como também para contribuir para o crescimento das nossas comunidades. Isto porque quando se faz este exercício, há que, posteriormente, fazer a transferência deste conhecimento para as comunidades, através da extensão universitária.
Enquanto a UEM está neste exercício, continua a ser a universidade mais procurada pelos moçambicanos.
Sim! Isto demonstra o trabalho que é feito pela Universidade. Devo dizer que, mesmo com as manifestações deste ano, tivemos mais procura do que o ano anterior, com cerca de 25.000 candidatos. É interessante perceber que as pessoas não apenas escolhem a UEM, mas entendem que é preciso se formar.
Ainda no âmbito da investigação, a nossa instituição integrou, em 2023, a uma Associação de Universidades de Investigação de África (ARUA), um grupo de 21 universidades que têm uma visão de transformação em universidade de investigação.
O facto de a UEM não estar a conseguir responder à procura, a Universidade sente-se pressionada? Como equaciona trabalhar para responder a esta procura social?
Neste momento, temos cerca de 60 universidades no país, entre públicas e privadas, mas a UEM tem sido a mais procurada por alguma razão. Devido ao excelente trabalho que tem estado a fazer. As capacidades que são criadas internamente dependem do investimento e das condições criadas. Em termos estatísticos, fala-se de cerca de 250 mil estudantes divididos por 60 universidades do ensino superior no país. Desse número, a UEM tem cerca de 50 mil estudantes, portanto, 20 por cento do universo total. De facto, a procura continua sendo maior que a capacidade de resposta. Mas isto depende das condições objectivas e a UEM tem o rigor nos seus processos; mesmo para a abertura dos cursos, esta deve obedecer a condicionalismos que são necessários para ampliar as ofertas formativas.
Por exemplo, em 2026, vamos lançar o curso de Licenciatura em Engenharia de Telecomunicações e Engenharia de Petróleos, além da introdução de 5 cursos, muito recentemente, nas áreas de Geologia, Minas e Petróleo. Portanto, esta é a forma de ampliar, mas temos que ampliar com qualidade, por isso, continuaremos a ter essas limitações nas admissões.
Em termos de gestão, a UEM é independente ou depende do Governo?
A UEM é uma universidade pública. A maior parte do nosso orçamento vem do Estado, sobretudo, para o pagamento de salários. Em Moçambique, apenas 0.33 por cento do PIB é colocado a favor da ciência e da investigação. Trata-se de uma percentagem mínima e isto coloca desafios às instituições que se pretendem de qualidade.
Por isso, a UEM através dos seus docentes, recorre às aplicações das chamadas internacionais e através das parcerias de relevo a nível nacional e internacional que nos permitem realizar a investigação que nós fazemos.
Temos parceiros destacáveis como a Suécia, com mais de 45 anos de parceria. Tem apoiado em várias áreas, incluindo na investigação. Temos a Itália, um parceiro de longa data, entre outros.
Também temos estado a criar Centros de Excelências. Temos, actualmente, Centros de Excelência em Petróleo e Gás, e o de Sistemas Agroalimentares e Nutrição, financiados pelo Banco Mundial. São áreas preponderantes para o crescimento do país, e é através de parcerias e da capacidade interna dos recursos humanos existentes que respondemos às chamadas internacionais competitivas que conseguimos projectos para continuar a fazer a investigação e a extensão universitária à favor do país.
Magnifico Reitor, há uma reclamação generalizada sobre o preço de propinas nas universidades em Moçambique. Que avaliação faz das propinas que a UEM aplica tendo em conta o contexto?
Na verdade, o que se paga não corresponde a 2 por cento daquilo que seria o custo real do estudante por ano. Em termos de propina, o nosso estudante diurno paga, dependendo do número das disciplinas, cerca de 3 mil meticais. Mas se for um curso técnico como Medicina ou Engenharia, há custos relativos aos reagentes, manutenção das salas de aula e outros.
O que que se paga está muito longe do que corresponde a verdade. O Governo tem estado, em grande medida, a subsidiar a formação superior, sobretudo, no período diurno.
E mais do que isso, o Estado, via mecanismo de bolsas de estudo, tem estado a atribuir aos mais carenciados a oportunidade de não pagar, incluindo ainda um subsídio mensal que lhe permite frequentar o ensino superior.
Ao nível da UEM, temos nove residências universitárias em que acomodamos os menos favorecidos para poderem frequentar o ensino superior em condições aceitáveis.
Continuamos a cumprir com a responsabilidade que nos foi atribuída pelo presidente Samora Machel, segundo o qual, a UEM devia ser uma universidade do povo para povo.
Em relação ao pós-laboral, há um custo mínimo que deve ser pago, porque há que remunerar os docentes que não são pagos com o salário do período regular, entre outras condições necessárias para que o curso funcione.
Em media, quantos estudantes a UEM coloca por ano no mercado?
Do universo dos 250 mil estudantes em todas as universidades, 10 mil são graduados por ano. E, desse número, nós colocamos no mercado dois mil estudantes anualmente. Tendo em conta o universo da população moçambicana, é uma gota no oceano. O grande desafio que temos é fazer crescer a indústria transformadora para acomodar os que são graduados para o mercado do trabalho.
Questiona-se muito o que se estuda nas universidades e as necessidades do mercado laboral. Como avalia essa situação?
Os desafios da formação continuam diversos e, do ponto de vista da qualidade que se oferece, também variam. A primeira solução passa por envolver o sector produtivo no processo da formação. Em países como EUA, a maior parte da investigação decorre nas empresas, a partir de académicos que são levados das universidades, com soluções concretas que partem das preocupações da própria empresa. E, quando são desenhados os currículos das universidades, o sector produtivo deve definir o que se precisa de facto.
No caso da UEM, nós não desenhamos nenhum currículo sem envolver os que estão interessados na área, que é o sector produtivo. E, também, envolvemos os especialistas dessas áreas no processo de formação, por terem a experiência prática necessária para os jovens. Mas, também, é preciso que as instituições ofereçam oportunidades aos estudantes de terem os chamados “soft skills”, sem os quais, os graduados não podem responder às preocupações do mercado apesar de terem uma capacidade técnica de qualidade.
Então, a ligação entre o sector produtivo e as universidades não deve acontecer como um mecanismo de recepção dos candidatos já graduados. Deve ser um mecanismo que começa a partir do desenho dos próprios currículos, garantindo o acompanhamento e interação ao longo da formação para que no fim aquele graduado tenha identidade em relação ao mercado.
O Reitor está a dizer que o que as universidades formam ainda é inferior, olhando para o universo populacional. Mas há uma percepção pública de que as universidades estão a formar um exército de moçambicanos e desempregados.
Um estudo por nós feito indica que o graduado da UEM, em média, acede ao emprego em um ano. Em Moçambique, formarmos em demasiado na área das ciências sociais e humanas, 73 por cento. Estamos a formar mais nas universidades ao invés dos politécnicos, que incorporam o saber fazer.
É importante falar das nossas escolas superiores que foram criadas e pensadas em função da localização geográfica. E, eu, constatei que elas não têm estado a fazer o papel para o qual foram inicialmente pensadas. E o que estamos a fazer, é garantir que essas escolas não só produzam como também sirvam de um espaço de aprendizado real.
Para resolvermos o problema do emprego, primeiro é mantermos a indústria transformadora e, depois, fazermos o maior equilíbrio possível na formação, entre as ciências socias com as áreas do STEM (Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemáticas).
Nos últimos 50 anos, acha que a academia deu um contributo destacável para o crescimento do país?
Sim. Porque, ao longo deste tempo, houve sempre uma responsabilidade que foi atribuída às instituições de ensino superior, em que a primeira era de formação de quadros, a maior parte dos quais servem, hoje, o país. Mas há uma outra componente que as universidades também conseguiram responder, que é incutir a responsabilidade histórica e identitária nos formandos. O pensamento moçambicano tinha que sair das universidades moçambicanas. Hoje, temos moçambicanos com pensamento estritamente de patriota. Mas também existe a componente da responsabilidade social. O Estado, por via das instituições de ensino superior, formou vários moçambicanos que continuaram a servir o país. Apesar de sofrerem várias transformações ao longo deste tempo, as universidades contribuíram, em grande medida, para o crescimento deste país.
E para que este contributo se mantenha, o que deve continuar a ser feito pela universidade?
Como disse, o papel das universidades é a formação de quadros com qualidade, capazes de servir o país. Temos também de pensar que o processo de crescimento do país só será possível se as instituições de ensino superior estiverem envolvidas.
Qual deve ser o papel da academia para suprir as desigualdades sociais profundas que existem no país?
Aqui há um desafio de fazermos uma investigação aplicada às necessidades das comunidades. Temos também que desenhar estratégias que permitam que o investimento feito de grande impacto possa ser nas comunidades e feito por aqueles que tem conhecimento científico. Por exemplo, no tema das mudanças climáticas, penso que a academia ainda não está a fazer aquilo que devia fazer, porque não cabe apenas a investigação, mas incluir a advocacia que consiste na transmissão de mensagens impactantes para que as pessoas percebam. Por exemplo, a questão do terrorismo, em Cabo Delgado, o que a universidade está a fazer? Portanto, o que eu defendo, é que a academia saia dos murros da universidade, mas, para isso acontecer, deve haver um projecto de grande escala que assegure que há uma ligação entre os planos do Governo e os planos de investigação que deve ser feita nas instituições de ensino superior.