“Desafios da iniciação científica no ensino da graduação na era digital”
Prof. Doutor Manuel Macia aponta ajustes curriculares para conferir, aos estudantes, habilidades de produção do conhecimento científico
Em 2013, a UEM redefiniu a sua Visão e Missão, trilhando um novo caminho, com vista a tornar-se numa Universidade de Investigação (UdI). Este processo implica uma série de ajustes que deverão ser levados a cabo, entre os quais, a iniciação científica para que os estudantes, desde cedo, sejam treinados na produção do conhecimento científico e sejam assegurados os necessários ajustes curriculares.
O Prof. Doutor Manuel Macia encabeça uma equipa constituída por cinco investigadores que apresentaram uma comunicação no IX Seminário Pedagógico da UEM, que decorreu de 5 a 7 de Julho corrente. A equipa está, neste momento, a finalizar o esboço do artigo que será submetido à Revista Científica da UEM para o processo de revisão por pares. O Prof. Doutor Manuel Macia e seus colegas abordam, no artigo, os desafios da iniciação científica do ensino, ao nível da graduação na era digital, onde constatam, entre outros aspectos, fracas habilidades consideradas básicas para o processo de iniciação cientifica, nomeadamente saber ler e escrever correctamente, saber interpretar um texto e possuir um raciocínio lógico. Para os autores, isto deve-se ao facto de que os estudantes acedem ao ensino superior em Moçambique, regra geral, desprovidos destas habilidades. O artigo intitulado “Procurando a agulha no palheiro: os desafios da iniciação científica no ensino da graduação na era digital” aprofunda os desafios da Universidade, as necessidades de ajuste curricular e capacitação dos docentes, de modo a satisfazerem as demandas do ensino, num contexto de universidade de investigação. Acompanhe a seguir a entrevista.
Professor, no fundo, qual é o perfil do estudante que chega ao ensino superior?
O perfil dos estudantes que ingressam no Ensino Superior e na UEM, em particular, apresentam uma elevada heterogeneidade social e cultural, o que expressa a proveniência de diversos meios socioculturais, com diferentes pertenças étnicas, condições económicas diferenciadas e com origens geográficas também diferentes. A visão comum sobre o ES está ligada às expectativas de mobilidade social, aliás, inteiramente legítimas – diga-se de passagem. Por consequência, o objectivo principal dos estudantes do ES é a obtenção de um diploma que lhes permita garantir melhores oportunidades no mercado de emprego e não propriamente a aquisição e domínio de conhecimento científico. Na verdade, há quase consenso entre os docentes que, infelizmente, estes estudantes apresentam fracas habilidades académicas, incluindo problemas de base como dificuldades na leitura, escrita e compreensão de textos técnicos e científicos.
Este perfil sugere um contexto desafiador para a realização de uma iniciação científica sucedida, pois requer a criação de condições que levem os candidatos/estudantes do ES a ajustar o seu perfil académico, para poderem corresponder aos desafios de iniciação científica.
Sendo assim, quais seriam os desafios institucionais e curriculares da Universidade para elevar a qualidade destes estudantes?
Ao nível a UEM, estão em curso um conjunto de iniciativas que incluem a revisão curricular, pois, até aqui, nós éramos uma universidade centrada no ensino. Em outras palavras, estamos num processo de mudança de paradigma, porque os currículos em revisão não tinham como foco a investigação, ainda que esta ocorresse em pequena escala, mas esse não era o foco. Temos estudantes que se formaram no contexto da universidade de ensino, que possuem excelentes habilidades de investigação, mas esse não era o foco. Temos que voltar aos currículos e introduzir pacotes muito bem estruturados sobre a investigação, desde o primeiro ano, prever momentos onde haja uma formação mais intensiva, dentro dos horários que são desenhados, para que se habituem ao exercício de leitura intensiva e interpretação da escrita. É um desafio muito grande porque são apenas quatro anos para formarmos licenciados com habilidades de investigação, reconhecendo, contudo, que um licenciado não é um investigador completo, uma vez que, de facto, a investigação acontece no nível de pós-graduação, isto é, ao nível de mestrado e doutoramento. Mas, para tal, é preciso formarmos bons licenciados.
Um outro desafio é a formação dos docentes que, normalmente, são seleccionados do grupo de melhores estudantes. Aqui, é necessário capacitá-los em conhecimentos psicopedagógicos e didácticas das suas áreas de formação, por forma a tirar melhor proveito das suas habilidades.
No que diz respeito aos desafios institucionais, estes são de ordem organizacional que requerem o apetrechamento dos laboratórios e salas de aula e garantir que os docentes saibam trabalhar nessas plataformas digitas que auxiliam o ensino.
Quais são os modelos de iniciação científica que melhor se adequam ao nosso contexto de universidade?
Eu não posso dizer se é este ou aquele, porque os cursos são diferentes. Em princípio, cada curso deveria adoptar um tipo de modelo que se ajusta à sua formação e garantir a inclusão. Por exemplo, se um departamento convidar estudantes previamente escolhidos por possuírem algum potencial para serem investigadores, significa deixar de fora uma parte significativa de estudantes. Nesse sentido, o melhor modelo é aquele em que toda a turma é envolvida numa pesquisa concreta, mas com finalidade pedagógica, onde os estudantes são subdivididos em pequenos grupos para fazerem a mesma pesquisa ou parte desta, mas com tarefas específicas. E, a partir desse exercício, podem ser retirados aqueles que têm vocação para a investigação.
O mundo digital constitui uma grande oportunidade de democratização e deselitização do conhecimento científico. Mas, no nosso contexto, os estudantes ainda continuam com uma fraca literacia académica, porque?
O mundo digital tem um grande potencial, mas também tem muitas armadilhas e os estudantes, por várias razões, não têm capacidade para discernir o que realmente é relevante, e cabe a nós, como instituição que possui especialistas e investigadores já maduros, mostrar-lhes o que realmente importa. Mas, também, os estudantes devem ter essa vontade de aprender, porque o mundo digital é tão veloz, de tal modo que, nesse mesmo mundo, não se encontra a atenção necessária que o estudante devia ter. É necessário treiná-los, de modo que tenham capacidade de discernimento sobre os recursos digitais disponíveis. Por exemplo, na investigação existem sites com credibilidade e, dezenas, senão mesmo centenas, sem credibilidade. Isto decorre do facto de haver muito “lixo” nesse mundo digital, e os estudantes não conseguem perceber que, parte desses sites, não são importantes para a construção do conhecimento que se pretende. E é nosso papel treinar os estudantes nesse sentido.
Significa que grande parte dos licenciados não possuem habilidades requeridas para a investigação?
As estatísticas oficiais apontam para cerca de 40 por cento da população que não sabe ler nem escrever, mas estamos a vir de uma realidade de cerca 90 e tal por cento. Em 43 anos de independência, isto é uma obra, mas ainda há muito caminho por percorrer. Se fizermos um exercício de filtragem desses 60 por cento, vamos descobrir que, talvez, uns 20 por cento é que realmente têm essa competência exigida. Desse modo, concluímos que há um trabalho que a Universidade pode e deve fazer. É o que propomos no artigo, nomeadamente a iniciação científica, que olha para o nosso contexto e que envolve todos os estudantes, bem como a realização dos devidos ajustes curriculares necessários. Ademais, um dos argumentos que trazemos no artigo é de que, paradoxalmente, o esforço de décadas de escolarização (e alfabetização) poderá estar a ser posto em causa pela invasão do mundo virtual que, estranhamente, devolve às actuais gerações de estudantes a preguiça de ler e escrever. Ora, não é possível ser se cientista, sobretudo em ciências sociais e humanas, sem uma competência de domínio de código académico que inclui o domínio de escrita e fala codificados.