
Seminário no CEA discute ética e desafios da digitalização de arquivos sonoros
Projecto “Vozes Empoeiradas” propõe uma reflexão sobre memória, justiça arquivística e direitos de autor em Moçambique
O académico e antigo Director da Escola Nacional de Música, Jaime Guambe, defendeu que a digitalização de arquivos tradicionais levanta novos desafios éticos e jurídicos, sobretudo no que respeita à protecção dos direitos de autor e à necessidade de reforçar a legislação cibernética em Moçambique.
Guambe falava durante o seminário internacional “Vozes Empoeiradas: Arquivo, Memória e Justiça Arquivística em Moçambique (1976–1990)”, promovido pelo Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
Segundo o académico, a transposição de conteúdos analógicos para formatos digitais como MP3 e MP4 exige uma reflexão sobre ética e responsabilidade institucional, uma vez que a obra digitalizada foge à protecção da legislação tradicional e circula num espaço onde apenas a ética pode garantir o respeito pelos direitos de autor.
Recorrendo ao contexto histórico, Guambe lembrou que o Código de Direitos de Autor vigente durante o período colonial até 2001 não contemplava devidamente os direitos de propriedade intelectual dos criadores moçambicanos.
Enquanto Província Ultramarina, toda a gestão resultante da criação artística era feita a partir de Portugal, sem qualquer benefício para os autores moçambicanos, explicou, para depois acrescentar que, mesmo após a independência, o ambiente político e social da época não favoreceu o reconhecimento efectivo desses direitos. “Os jornais eram do povo e,até mesmo os poemas e desenhos de Craveirinha, eram considerados do povo”, observou.
Foi apenas a partir da década de 1990, com a abertura democrática, que o país iniciou um processo de revisão legislativa profunda, resultando na aprovação de instrumentos fundamentais como a Lei de Imprensa, o direito de acesso à informação e o direito à criação científica, literária e artística.
A Lei dos Direitos de Autor foi aprovada, pela primeira vez, em 2001, revista em 2022 e regulamentada apenas em 2024, consolidando o reconhecimento do direito exclusivo do autor sobre a sua obra, incluindo a autorização de uso e distribuição. “Agora, está previsto, para o autor de uma determinada obra, o direito exclusivo, cabendo apenas a ele, o direito de autorizar a sua disponibilização e utilização”, anotou.
Contudo, Guambe alertou que a legislação também introduz limitações equilibradas para permitir que bibliotecas, museus e instituições de ensino superior mantenham acesso ao conhecimento em nome do interesse público e da preservação da memória colectiva.
O seminário integrou-se no projecto “Vozes Empoeiradas”, uma iniciativa do CEA dedicada ao resgate, preservação e futura digitalização do arquivo sonoro daquela unidade, composto por 350 cassetes gravadas entre 1976 e 1990.
O acervo reúne entrevistas com antigos combatentes da Luta de Libertação Nacional, líderes comunitários, camponeses, anciãos, intelectuais, além de discursos políticos e registos de eventos académicos.